Capítulo 40
Lydia é convidada para ir à Brighton
A primeira
semana desde o regresso delas em breve passou e uma segunda começou. Era a
última da estada do destacamento em Meryton, e todas as jovens das redondezas
definhavam de desgosto. A melancolia era quase geral. Apenas as duas mais
velhas da família Bennet conseguiam ainda comer, beber, dormir e passar o seu
tempo da forma habitual. Frequentemente eram acusadas de insensibilidade por
Kitty e Lydia, cujo desgosto era profundo, e não compreendiam a indiferença em
qualquer membro da família.
- Meu Deus! Que
vai ser de nós? Em que nos vamos nós ocupar? - exclamavam elas amarguradamente.
- Como te podes tu mostrar tão sorridente, Lizzy?
A Sr.a Bennet,
que era uma mãe afectuosa, compartilhava da tristeza das filhas. Ela
recordava-se do que sofrera há vinte e cinco anos atrás, numa situação
idêntica.
- Compreendo-as
perfeitamente - dizia ela -, chorei durante dois dias seguidos quando o
regimento do coronel Miller partiu. Pensei morrer de desgosto.
- Creio bem que
é o que me irá acontecer - disse Lydia.
- Se ao menos
pudéssemos ir até Brighton! - observou a Sr.a Bennet.
- Oh!, sim!, se
ao menos pudéssemos ir até Brighton! Mas o pai é um desmancha-prazeres.
- Alguns banhos
de mar restabelecer-me-iam para sempre.
- E a tia
Philips disse que uma mudança de ares me faria muito bem - acrescentou Kitty.
Tais eram as
lamentações que constantemente se ouviam em Longbourn. Elizabeth procurava
rir-se delas, mas a sua vergonha roubava-lhe todo o prazer. Ela apercebia-se de
novo da justiça das objecções do Sr. Darcy; e nunca antes se sentira tão
disposta a perdoar a sua interferência na vida do amigo.
Porém, as
sombrias perspectivas de Lydia em breve foram
dissipadas, pois
a Sr.a Forster, a mulher do coronel do destacamento, convidou-a para
acompanhá-la a Brighton. Essa inestimável amiga era bastante jovem e estava
casada há muito pouco tempo. A boa disposição e a frivolidade de ambas
recomendara-as uma à outra e após três meses de relações tinham-se tornado
íntimas.
O êxtase de
Lydia, a sua adoração pela Sr.a Forster, a alegria da Sr.a Bennet e a
mortificação de Kitty eram impossíveis de descrever. Inteiramente indiferente
aos sentimentos da irmã, Lydia corria pela casa expandindo a sua enorme
felicidade, exigindo as congratulações de todos, rindo e falando com uma
estridência maior do que o costume; e, enquanto isso, a desafortunada Kitty
permanecia na sala, lamentando o seu destino em termos despropositados e numa
voz ressentida.
- Não compreendo
por que não me convidou a Sr.a Forster também a mim - dizia ela. - Embora eu
não seja tão íntima dela, tenho tanto direito em ser convidada como Lydia, e
mais até, pois sou dois anos mais velha.
Em vão Elizabeth
procurou incutir-lhe sentimentos mais sensatos e Jane maior resignação. Quanto
a Elizabeth, esse convite estava longe de lhe produzir os mesmos sentimentos
que em sua mãe e Lydia, pois ela considerava-o como uma espécie de sentença de
morte para todas as possibilidades de sua irmã vir um dia a ter algum bom
senso; e apesar da repugnância que tal caso lhe inspirava, não hesitou em
aconselhar confidencialmente seu pai a não a deixar ir. Chamou-lhe a
atenção para todas as impropriedades da conduta de Lydia e para as poucas
vantagens que lhe poderiam advir da intimidade com uma mulher como a Sr.a
Forster e para a probabilidade de Lydia se tornar ainda mais imprudente na
companhia de tal pessoa e num lugar onde as tentações seriam maiores que em
casa. Após ouvi-la atentamente, ele respondeu-lhe:
- Lydia não
descansará enquanto não lhe acontecer alguma; e nunca ela encontrará melhor
ocasião para fazer uma tolice como a actual, em que não dará despesas ou
trabalho à família.
- Se o senhor se
desse conta - disse Elizabeth - dos grandes inconvenientes que o comportamento
leviano de Lydia, em público, nos pode trazer, ou melhor, que já nos trouxe,
encararia a questão de modo diferente.
- Já vos trouxe?
- repetiu o Sr. Bennet. - Será que ela já afugentou algum dos teus apaixonados?
Minha pobre Lizzy!
Mas não
desanimes. Esses jovens difíceis, que não suportam a proximidade de um pouco de
absurdo, não são dignos de consideração. Vamos, dá-me a lista dos pobres
coitados que foram postos em fuga pelas tolices de Lydia.
- Está enganado,
meu pai. Não tenho desgostos desses a lamentar. Não é de dissabores
particulares, mas de inconvenientes que eu me queixo. A nossa reputação é
necessariamente afectada pela leviandade, a imprudência e o desprezo de Lydia
por qualquer restrição, características do seu carácter. Perdoe-me, mas preciso
falar claramente. Se não for o pai a dar-se ao trabalho de reprimir a excessiva
exuberância dela e a fazer-lhe ver que as suas actuais ocupações não constituem
a essência da vida, em breve perderá a possibilidade de alguma vez a corrigir.
O seu carácter está-se definindo e aos dezesseis anos ela só pensará em
namorar, cobrindo-se a si mesma e à família de ridículo. E, quando falo em
namorar, refiro-me a coisa bem pior, sem que ela não tenha outros atractivos
que não sejam a sua juventude e boa aparência. A sua ignorância e futilidade
torná-la-ão incapaz de vencer o desprezo geral que o seu apetite imoderado de
admiração há-de provocar. Kitty corre o mesmo perigo também. Ela acompanhará de
olhos fechados os passos de Lydia. Vaidosa, ignorante, ociosa e absolutamente
descontrolada! Oh!, meu querido pai, como pode supor que elas não sejam
censuradas e desprezadas em qualquer lugar que apareçam e que as suas irmãs não
se vejam frequentemente envolvidas no seu desprezo?
O Sr. Bennet
percebeu a profunda ansiedade da filha, e, tomando-lhe afectuosamente a mão,
respondeu:
- Não te
preocupes demasiado, meu amor. Onde quer que tu e Jane apareçam, serão sempre
respeitadas e apreciadas; e não serão menos admiradas por terem duas, ou,
melhor, três irmãs bastante tolas. Se Lydia não for a Brighton, não teremos um
momento de sossego nesta casa. Deixemo-la ir, portanto. O coronel Forster é um
homem sensato e tomará precauções para que nada de mal lhe aconteça.
Felizmente, ela é suficientemente pobre para não se tornar num objecto de
grandes cobiças. Em Brighton ela passará mais despercebida do que aqui. Os
oficiais não deixarão de encontrar raparigas mais dignas de atenção. Esperemos,
pois, que a sua estada lhe sirva de lição e lhe faça ver qual a sua verdadeira
insignificância. De qualquer modo, ela nunca poderá piorar a sua conduta muito
mais, sem que nos autorize a fechá-la em casa para o resto da vida.
Elizabeth foi
obrigada a contentar-se com tal resposta; mas a sua opinião continuava
inabalável e deixou seu pai, desanimada e triste. Contudo, não estava na sua
natureza remoer os seus desgostos, tornando-os assim ainda maiores.
Bastava-lhe o
consolo de ter cumprido o seu dever; e inquietar-se com males inevitáveis ou
aumentá-los pela ansiedade era atitude que não combinava com o seu feitio.
Se Lydia e sua
mãe tivessem alguma vez sabido da conversa que Elizabeth tivera com o Sr.
Bennet, toda a sua volubilidade conjunta não seria suficiente para exprimir a
indignação que as possuiria. Na imaginação de Lydia, uma visita a Brighton
compreendia todas as possibilidades de felicidade terrena. Ela via, com o olhar
criador da ficção, as ruas
daquela alegre cidade balneária repletas de oficiais. Imaginava-se o centro de
atenção de dezenas e centenas deles. Via todo o esplendor do acampamento
militar, as barracas estendendo-se em belas filas regulares, povoadas de jovens
alegres e resplandecentes nos seus belos uniformes; para completar a cena,
via-se a si mesma sentada sob uma dessas barracas, namorando, pelo menos, seis
oficiais ao mesmo tempo.
Se ela tivesse
sabido que a sua irmã procurara arrancá-la a tais perspectivas e realidades
como essas, qual não teria sido a sua indignação? Ela apenas poderia ser
compreendida por sua mãe, cujos sentimentos se assemelhariam aos seus. A ida de
Lydia a Brighton era a única coisa que a consolava da certeza melancólica de
que o seu marido não tencionava também ir.
Mas viviam na
ignorância do que se passara; e os seus êxtases continuaram com pequenos
intervalos, até ao dia da partida de Lydia.
Elizabeth veria,
então, o Sr. Wickham pela última vez. Tendo-o encontrado, desde o seu regresso,
frequentemente em sociedade, a sua agitação acalmara-se um pouco; quanto às
emoções da sua antiga preferência, elas tinham-se desvanecido por completo.
Conseguia, mesmo, distinguir uma certa afectação e monotonia nas próprias
gentilezas que a princípio a tinham deliciado. Além disso, na conduta actual de
Wickham para com ela Elizabeth encontrava uma nova fonte de contrariedade, pois
a vontade que ele manifestava em renovar aquelas atenções, que tinham
caracterizado os primeiros tempos das suas relações, agora, após tudo o que se
passara, apenas serviam para a irritar ainda mais. Ela acabou por perder todo o
respeito por ele, ao ver-se assim escolhida como objecto de tão fúteis
galanteios. E, enquanto os repelia com firmeza, não podia deixar de sentir a
censura implícita na convicção de Wickham de que, quaisquer que tivessem sido
as causas que tinham feito cessar as atenções para com ela, e por maior que
tivesse sido o período de tempo em que o fizera, a vaidade de Elizabeth seria
gratificada e a sua preferência reconquistada no momento em que quisesse
renovar as suas gentilezas.
No último dia em
que o destacamento permaneceu em Meryton, Wickham jantou em Longbourn,
juntamente com outros oficiais. Elizabeth estava tão pouco disposta a deixá-lo
partir impune que, quando Wickham se quis informar de como ela passara o seu
tempo em Hunsford, respondeu-lhe que o coronel Fitzwilliam e o Sr. Darcy
-tinham passado três semanas em Rosings e perguntou-lhe se acaso conhecia o
primeiro.
Ele pareceu-lhe
deveras surpreendido e alarmado; mas, após alguns minutos de concentração,
respondeu-lhe, sorrindo, que outrora se encontrara frequentes vezes com ele; e,
depois de observar que ele era um autentico cavalheiro, perguntou se Elizabeth
simpatizara com ele. Ela deu lhe uma resposta calorosamente afirmativa. Com ar
de perfeita indiferença, pouco depois ele acrescentou:
- Quanto tempo
disse que eles passaram em Rosings?
- Perto de três
semanas.
- E viu-o com
frequência?
- Sim,
praticamente todos os dias.
- As suas
maneiras diferem bastante das de seu primo.
- Sim, bastante.
Mas sou agora de opinião de que o Sr. Darcy ganha muito em ser conhecido.
- Sim!? -
exclamou Wickham, com um olhar que não escapou a Elizabeth. - E poderei
perguntar... - mas, refreando-se, ele acrescentou em tom mais alegre: - Terá
sido na maneira de falar que ele melhorou? Ter-se-á dignado a introduzir um
pouco de cortesia no seu estilo habitual? Pois não ouso
esperar - continuou ele num tom mais baixo e grave - que ele tenha melhorado no
essencial.
- Oh!, não! -
disse Elizabeth - Quanto ao essencial, creio bem que ele continua exactamente
como sempre foi.
Enquanto ela
falava, Wickham, pela sua expressão, parecia hesitar se haveria de se mostrar
alegre pelas suas palavras ou desconfiar do sentido das mesmas. Notava qualquer
coisa no rosto de Elizabeth que o obrigava a seguir as palavras dela com
ansiosa atenção. Elizabeth acrescentou:
- Quando eu
disse que ele ganhava em ser conhecido, não queria com isso dizer que o seu
espírito, nem tão-pouco as suas maneiras, estavam em vias de aperfeiçoamento,
mas que, graças a um conhecimento mais íntimo, o seu carácter se tornava mais
compreensível.
A inquietude de
Wickham transparecia agora no rubor que lhe subira ao rosto e no seu olhar pouco
tranquilo. Durante alguns minutos não pronunciou palavra, e, finalmente,
vencendo o seu embaraço, voltou-se de novo para Elizabeth e disse-lhe, em tom
muito grave:
- A menina, que
conhece tão bem os meus sentimentos para com o Sr. Darcy, compreenderá decerto
quanto eu me alegro por o ver assumir, pelo menos, a aparência de justiça.
Nesse sentido o orgulho dele prestar-lhe-á o melhor dos serviços, senão para
ele próprio, pelo menos para os outros, pois o impedirá de cometer tão
flagrantes injustiças como as de que eu fui objecto. Temo somente que essas
precauções, às quais a menina acaba de aludir, sejam apenas adoptadas durante
as visitas a casa de sua tia, por cuja opinião e julgamento ele nutre o maior
respeito. O temor que a sua tia lhe inspira sempre actuou nele, quando se
encontram juntos, e grande parte se deve atribuir ao desejo que ele tem de
favorecer o seu projectado casamento com a Menina de Bourgh, que ele há muito
tempo acaricia.
Elizabeth não
pôde deixar de sorrir, mas respondeu apenas com um ligeiro aceno de cabeça.
Compreendeu que ele desejava arrastá-la para o assunto das suas mágoas e não
estava disposta a tolerá-lo. Durante o resto da noite, Wickham procurou
mostrar-se alegre e despreocupado como sempre, mas cessou todas as suas atenções
para com Elizabeth. Separaram-se com mútua cortesia e possivelmente com o
desejo igual de nunca mais se encontrarem.
Quando chegou a
hora de as visitas se retirarem, Lydia regressou com a Sr.a Forster para
Meryton, de onde partiriam no dia seguinte, logo de madrugada. A separação dela
do resto da família foi mais ruidosa do que patética. Kitty foi a única que
chorou, mas as suas lágrimas eram de humilhação e inveja. A Sr.a Bennet
mostrou-se prolífica nos seus desejos de felicidade para a filha e eloquente
nas suas incitações para que ela não perdesse uma oportunidade de se divertir,
conselho este que, como tudo levava a crer, seria seguido fielmente; e, no meio
do clamor com que Lydia exprimia a sua felicidade, os adeuses menos ruidosos
das irmãs quase não foram ouvidos.
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