Capítulo 39
Elizabeth e Jane conversam após chegarem em casa
Elizabeth não
conseguiu refrear por mais tempo a sua impaciência em contar a Jane o que lhe
tinha sucedido; e, finalmente, resolvendo omitir todos os detalhes que
dissessem respeito a sua irmã e prevenindo-a de que ia ficar imensamente
surpresa, contou-lhe, na manhã seguinte, grande parte da cena que se passara
entre o Sr. Darcy e ela própria.
O assombro da
Menina Bennet foi, a princípio, grande, mas em breve foi mitigado pela sua
forte afeição fraternal, que tornava qualquer admiração por Elizabeth
perfeitamente natural, acabando por toda a surpresa se perder no âmago dos
outros sentimentos. Era, realmente, lamentável que o Sr. Darcy tivesse
manifestado a sua afeição de forma tão pouco cativante; mas o que mais a
entristeceu foi o desgosto que a recusa de sua irmã lhe teria causado.
- A certeza que
ele tinha do seu êxito foi despropositada - disse Jane -; e não deveria tê-la
deixado transparecer; mas não te esqueças de como isto torna ainda mais cruel o
seu desapontamento.
- Com efeito -
disse Elizabeth -, tenho muita pena dele; mas o Sr. Darcy tem outros
sentimentos que provavelmente expulsarão dentro em breve a admiração que ele
possa ter por mim. Não me censuras por o ter recusado, não?
- Censurar-te!
Oh, não.
- Mas
censuras-me por ter aludido tão calorosamente a Wickham?
- Não, não tenho
conhecimento de causa para apontar o mal naquilo que tu disseste.
-Mas em breve o
terás, quando te contar o que se passou na manhã seguinte.
Elizabeth falou
então na carta, repetindo tudo o que ela continha na parte referente a Wickham.
Foi um grande choque para a pobre Jane, que de bom grado passaria pelo mundo
sem se aperceber de que existia nele tanta maldade como a que se concentrava
aqui num só indivíduo. Nem mesmo a justificação de Darcy, grata aos seus
sentimentos, era suficiente para a consolar de tal descoberta. Com grande
seriedade, Jane procurou ainda provar que havia uma possibilidade de erro,
tentando ilibar um deles sem acusar o outro.
- Isso de nada
serve, minha querida Jane - disse Elizabeth
-; nunca
conseguirás descobrir a maneira de provar que ambos são bons. Faz a tua
escolha, mas terás de te contentar apenas com um deles. As qualidades dos dois
reunidas dariam um homem bom; mas ultimamente as situações têm-se invertido
várias vezes. Quanto a mim, estou inclinada a acreditar no Sr. Darcy, mas tu
podes escolher o que quiseres.
Passou-se algum
tempo, contudo, antes que um sorriso aparecesse no rosto de Jane.
- Não me lembro
de ter alguma vez sofrido tamanha desilusão - disse ela. - Wickham é assim tão
má rês?! E quase inacreditável. E coitado do Sr. Darcy! Imagina só, Lizzy, o
que ele não terá sofrido. Que decepção! E saber, para mais, a má opinião que tu
tinhas dele! E ter de revelar tal coisa da sua própria irmã! É, realmente,
muito triste. Creio que sentirás como eu.
- Oh!, não! Toda
a minha compaixão e remorso se dissipam ao ver-te tão atormentada pelos mesmos
sentimentos. Confio tanto na tua capacidade de o redimir que cada vez me sinto
mais despreocupada e indiferente. A tua generosidade dispensa bem a minha, e,
se continuas lamentando-o por muito mais tempo, o meu coração ficará tão leve
como uma pena.
- Pobre Wickham!
O rosto dele parece exprimir tanta bondade! E os seus modos são tão abertos e
simpáticos.
- Houve,
decerto, um grande erro na educação desses dois jovens. Um deles tem todas as
qualidades e o outro apenas a aparência.
- Nunca achei,
verdadeiramente, que o Sr. Darcy aparentasse aquilo que tu lhe vias.
- E, no entanto,
considerava-me invulgarmente perspicaz ao tomar tão violentamente partido
contra ele, sem qualquer fundamento. Uma antipatia tão forte como a que eu
tinha por ele é um grande incentivo da inteligência e abre o caminho para a
ironia. Uma pessoa pode gracejar sem nada exprimir de justo, mas não pode rir a
vida inteira de um homem sem volta e meia esbarrar com algo de espirituoso.
- Lizzy, estou
certa de que quando leste a carta pela primeira vez não encaravas as coisas do
modo como o fazes agora.
- Realmente,
nessa altura não o podia. Fiquei muito perturbada, posso dizer infeliz, até. E
depois, não tinha ninguém com quem me abrir, não tinha uma Jane para me
consolar e dizer-me que eu não tinha sido tão fraca, leviana e insensata como
eu sabia que o fora. Oh!, como eu desejei ter-te junto de mim!
- Foi pena teres
usado expressões tão violentas falando de Wickham ao Sr. Darcy, pois agora
vê-se claramente quão imerecidas elas foram.
- Certamente.
Mas a infelicidade de ter falado tão amarguradamente foi uma consequência
natural dos preconceitos que eu vinha alimentando dentro de mim. Há um ponto
sobre o qual eu necessito do teu conselho. Gostava que me dissesses se devo ou
não revelar aos nossos conhecidos qual o verdadeiro carácter do Sr. Wickham.
A Menina Bennet
fez uma pequena pausa e respondeu:
- Acho que não
há motivo para tão terrível denúncia. Que pensas tu própria sobre isso?
- Penso não
dever dar tal passo. O Sr. Darcy não me autorizou a tornar públicas as suas
revelações; pelo contrário, rogou-me que guardasse para mim todos os pormenores
relativos ao episódio passado com sua irmã. E, se eu não mencionar este facto
capital, quem me acreditará? A má vontade que se generalizou contra o Sr. Darcy
é de tal modo violenta que metade da população de Meryton preferiria morrer a
vê-lo colocado sob uma luz mais favorável. Não me sinto com forças para luta
tão feroz. Wickham em breve partirá; e, posto isso, pouco importa que ninguém
aqui saiba qual o seu verdadeiro carácter. Algum dia ele acabará por ser
desmascarado, e nessa altura poderemos rir das estupidez dos outros por não o
terem adivinhado há mais tempo. De momento, nada direi.
- Tens toda a
razão. Denunciar publicamente os seus erros poderia representar para ele a
ruína de toda a sua vida. Quem sabe se ele já não se arrependeu do que fez e
vive ansioso por refazer a sua reputação. Não deveremos fazê-lo desesperar.
Esta conversa
servia de grande ajuda a Elizabeth para pôr um pouco de ordem no tumulto dos
seus pensamentos. Libertara-se dos
dois segredos que lhe pesavam há quinze dias e encontrara em Jane uma ouvinte
atenta e interessada, que não hesitaria em prestar-se de boa vontade a uma nova
conversa sobre o assunto. Havia, porém, algo mais que se escondia na sombra e
que a prudência de Elizabeth a impedia de desvendar. Não ousava relatar a Jane
a outra metade da carta de Darcy, nem revelar-lhe quão sinceramente Bingley
correspondera ao seu afecto. Esse segredo não poderia ela compartilhar com
ninguém; e tinha a consciência perfeita de que só se veria livre dele quando
entre ambos se restabelecesse um entendimento perfeito. «E então», pensou ela,
«se acaso tal acontecimento deveras improvável tomar alguma vez lugar, apenas
me limitarei a repetir o que o próprio Bingley terá dito de forma bem mais
agradável. Tal comunicação só poderá ser feita por mim, quando ela tiver
perdido todo o seu valor!»
De momento,
instalada na sua casa, ela tinha toda a oportunidade de observar o verdadeiro
estado dos sentimentos de sua irmã. Jane não estava feliz. Ela conservava ainda
muito viva a sua afeição por Bingley. Como nunca anteriormente se julgara
apaixonada, esses sentimentos tinham todo o calor e toda a frescura de um
primeiro amor, e, devido ao seu carácter e idade, maior firmeza do que essas
primeiras paixões em geral possuem. Ela guardava em tão fervoroso culto a
lembrança de Bingley e de tal modo o preferia a qualquer outro homem que
precisava lançar mão de todo o seu bom senso e de toda a sua consideração dos
sentimentos alheios para dominar aquelas tristezas, que corriam o risco de
tornar-se prejudiciais à sua saúde e à tranquilidade das pessoas que a
rodeavam.
- Então, Lizzy -
disse a Sr.a Bennet, um dia -, qual, agora, a tua opinião do insucesso de Jane?
Quanto a mim, estou decidida a não falar mais no assunto a ninguém. Foi o que
disse à minha irmã Philips, no outro dia. Mas não consigo perceber se Jane se
avistou com ele em Londres. Bem, isso só revela que ele não a merece, e suponho
que ela não terá qualquer possibilidade de reave-lo. Nada se diz sobre se ele
sempre vem passar o Verão a Netherfield. Já tratei de o indagar, mas ninguém me
soube responder.
- Creio bem que
ele nunca mais voltará a Netherfield.
- Oh, pois bem!
Ele fará o que quiser. Ninguém lhe pede que volte. Mas eu continuarei dizendo
que ele se portou de maneira muito desleal para com a minha filha; e, no lugar
dela, eu nunca o teria admitido. Resta-me a consolação de que Jane morrerá de
desgosto, e nessa altura ele arrepender-se-á do que fez.
Mas, como
Elizabeth não via consolação em tal prognóstico, preferiu não responder.
- Então, Lizzy -
continuou sua mãe -, pelo que me contas, os Collins não querem melhor vida, não
é? Muito bem, posto que isso dure. E que tal se come em casa deles? Charlotte é
uma excelente dona de casa, creio eu. Se ela é tão económica como a mãe, devem
estar pondo bastante dinheiro de lado. Extravagância é coisa que não se ouve
falar em casa deles, não?
Assim é, de facto.
- Eles velam por
uma boa administração dos seus haveres, podes estar certa. Sim, sim, aqueles
nunca correrão o risco de gastar mais do que aquilo que tem. Nunca terão
dificuldades de dinheiro. Ora, que isso lhes sirva de muito bom proveito! E,
naturalmente, eles estão constantemente arquitectando planos sobre Longbourn,
depois da morte de teu pai, não? Consideram-no já propriedade sua.
- Foi esse um
assunto que nunca mencionaram na minha frente.
- Claro! Era só
o que faltava. Mas não duvido que discutem o assunto amiúde entre eles. Pois
bem, se eles não têm quaisquer escrúpulos em apoderar-se dos bens que
legalmente não lhes pertencem, tanto melhor para eles. Eu, no seu lugar, esconder-me-ia
de vergonha.
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