Capítulo 34
Sr. Darcy entrega uma carta a Elizabeth
Na manhã seguinte, ao despertar, Elizabeth encontrou no seu espírito os mesmos problemas e meditações que, na véspera, o sono acabara por vencer. Ainda não se recompusera da surpresa. Era-lhe impossível pensar noutra coisa; e, incapaz de encontrar uma ocupação que a distraísse, resolveu, logo após o pequeno-almoço, fazer um pouco de exercício ao ar livre. Encaminhara-se para o seu passeio favorito, quando a deteve a lembrança de que o Sr. Darcy costumava por lá aparecer, e, em vez de penetrar no parque, Elizabeth tomou a azinhaga que o bordejava. A cerca do parque acompanhava a estrada de um dos lados e em breve ela passou por um dos portões.
Após percorrer
por duas ou três vezes aquele trecho da azinhaga, sentiu-se tentada, pela
beleza da manhã, a parar a um dos portões e contemplar o parque. Durante as
cinco semanas que permanecera no Kent, uma grande transformação se operara, e
cada dia as árvores ficavam mais verdes. Elizabeth preparava-se para continuar
o passeio, quando, no pequeno bosque que limitava o parque, avistou de relance
um homem caminhando na sua direcção. Receando que se tratasse do Sr. Darcy,
Elizabeth tratou de se afastar, mas a pessoa já se encontrava suficientemente
perto para poder vê-la. Apressando o passo, essa pessoa aproximou-se e
pronunciou o nome de Elizabeth. Esta estava de costas, mas, ao ouvir o seu
nome, embora reconhecesse a voz do Sr. Darcy, voltou a acercar-se do portão.
Ele, do outro lado, fizera o mesmo, e, estendendo-lhe uma carta, que ela
instintivamente aceitou, disse-lhe com ar altivo:
- Andei pelo
bosque na esperança de a encontrar. Quer dar-me a honra de ler esta carta? - E,
fazendo uma ligeira vénia, voltou-se e partiu.
Sem qualquer expectativa
de prazer, mas com grande curiosidade, Elizabeth abriu a carta e, com um
espanto sempre crescente, viu que o envelope continha duas folhas de papel,
inteiramente preenchidas por uma letra apertada. Prosseguindo no seu passeio
pela alameda, Elizabeth começou a ler. A carta estava datada de Rosings, das
oito horas da manhã, e constava do seguinte:
Não fique
alarmada, minha senhora, ao receber esta carta, pela apreensão de que ela
contenha a repetição daqueles sentimentos ou a renovação daquelas propostas que
ontem à noite tanto a maçaram. Escrevo-lhe sem qualquer intenção de a
aborrecer, ou de me humilhar, insistindo em exprimir esperanças de que, para a
felicidade de ambos, não poderão ser esquecidas cedo demais; e o esforço que
esta carta poderá representar, para mim ao escrevê-la e para si ao lê-la, teria
sido poupado, acaso o meu carácter não exigisse que ela fosse escrita e lida.
Necessito, pois, que me perdoe a liberdade com que exijo a sua atenção; sei que
os seus sentimentos me a concederão com relutância, mas não posso deixar de o
fazer.
Duas foram as
acusações que ontem à noite me fez, diferentes tanto na natureza como pela sua
importância. Acusou-me, primeiro, de ter separado o Sr. Bingley de sua irmã,
indiferente aos sentimentos de ambos; e, segundo, de ter arruinado a
possibilidade imediata e as probabilidades futuras do Sr. Wickham, desafiando
abertamente quaisquer direitos, a própria honra e a humanidade. Ter repudiado
voluntária e gratuitamente o companheiro da minha infância, o favorito
declarado de meu pai, um rapaz que dependia exclusivamente da nossa protecção e
a quem esta fora prometida, seria uma perversidade incomparavelmente mais grave
do que a separação de duas pessoas cuja afeição, embora verdadeira, nunca
poderia ter crescido excessivamente durante aquelas poucas semanas que
estiveram juntas. Espero, de futuro, estar salvaguardado da severidade das
censuras que me foram feitas com tanta veemência sobre estes dois casos, após a
leitura da seguinte explicação dos meus actos e seus motivos. Se nesta minha
exposição me vir na iminência de exprimir sentimentos que a possam ofender,
apenas me resta participar-lhe o meu sincero pesar. A necessidade a isso me
obriga - e quaisquer outras desculpas seriam absurdas. Pouco tempo depois da
nossa chegada ao Hertfordshire, percebi, juntamente com outras pessoas, que
Bingley preferia a sua irmã mais velha a qualquer outra rapariga na região.
Porém, foi só por ocasião do baile em Netherfield que pela primeira vez receei
que ele se apaixonasse seriamente. Já várias vezes o vira apaixonado. No baile,
enquanto dançava com a menina, soube, através da informação acidental de Sir
William, que as atenções de Bingley para com a sua irmã tinham dado azo a um
rumor geral acerca do casamento de ambos. Sir William fez-lhe referência como a
um acontecimento positivo, do qual só a data era incerta. A partir desse
momento dediquei toda a minha atenção à atitude do meu amigo; e reparei que a
inclinação dele pela Menina Bennet era mais evidente do que qualquer uma das
que lhe tinha visto anteriormente. Observei também a sua irmã. O olhar e as
maneiras eram francos, alegres e atraentes como sempre, mas sem qualquer
sintoma especial de afeição, o que definitivamente me convenceu de que, embora
ela aceitasse as atenções de Bingley com prazer, não as provocava porque
participasse do mesmo sentimento. Aqui, se a menina não se enganou, enganei-me
eu. O seu conhecimento íntimo de sua irmã tornará mais provável última
hipótese. Nesse caso, se o meu erro me levou a inflingir um desgosto a sua
irmã, o seu ressentimento não é injustificado. Porém, nada me impedirá de
afirmar que a serenidade do rosto de sua irmã e a tranquilidade dos seus modos
eram tais que trariam ao observador mais perspicaz a convicção de que, apesar de
toda a amabilidade do seu temperamento, o coração não era dos mais fáceis de
atingir. É certo que desejava acreditar na indiferença dela, mas ouso afirmar
que as minhas investigações e decisões não são geralmente influenciadas pelas
minhas esperanças ou receios. Não foi porque o desejasse que acreditei na
indiferença da sua irmã, mas, simplesmente, porque cheguei a esta convicção
imparcial, e ela é tão sincera quanto o meu desejo. As minhas objecções contra
tal casamento não foram apenas aquelas que ontem à noite lhe expus e que, no
meu caso, exigiram toda a força da paixão para serem vencidas; a desigualdade
social não representaria um mal tão grande para o meu amigo como para mim. Mas
existiam outras causas para a minha resistência; causas que, embora ainda
existentes e idênticas para ambos os casos, eu tentei esquecer porque não
diziam imediatamente respeito a mim. Tais causas necessitam ser mencionadas,
embora sumariamente. A situação da família de sua mãe, se bem que pouco
recomendável, nada era em comparação com aquela falta total de delicadeza tão
frequente e quase permanentemente demonstrada por tal senhora, pelas suas três
irmãs mais jovens e por vezes até pelo seu pai. Perdoe-me. Custa-me ofendê-la.
Contudo, qualquer que seja o aborrecimento que os seus parentes mais próximos
lhe possam causar ou a tristeza que a presente descrição não deixará de lhe
suscitar, espero que a seguinte reflexão lhe sirva de consolo: que o facto
universalmente reconhecido de que tanto a menina como a sua irmã mais velha sempre
se comportaram de modo a evitar uma censura semelhante é o melhor elogio que se
poderá fazer à sensatez e ao carácter de ambas. Acrescentarei apenas que tudo o
que se passou naquela noite veio confirmar a minha opinião sobre todas as
pessoas em questão e fortalecer a minha resolução de proteger o meu amigo de
uma aliança que eu considerava altamente desastrosa. Ele deixou Netherfield no
dia seguinte, como decerto está lembrada, com a intenção de regressar em breve.
Devo agora explicar qual a minha interferência no caso. A inquietude das irmãs
de Bingley fora igualmente despertada e logo descobrimos a coincidência dos
nossos sentimentos a tal respeito; e, convencidos da urgência em afastar o
irmão, decidimos acompanhá-lo a Londres. Foi o que fizemos, e não perdi tempo
em revelar ao meu amigo os inconvenientes da sua escolha. Descrevi-lhos e
frisei-os com toda a gravidade. No entanto, por mais que esta advertência possa
ter abalado a sua resolução, não creio que ela teria sido suficiente para
impedir o casamento, se não tivesse sido apoiada pela afirmação, que não
hesitei em fazer, de que a sua irmã lhe era indiferente. Ele acreditara até
àquele momento que a Menina Jane correspondia sinceramente à sua afeição, senão
com igual intensidade. Mas Bingley é por natureza muito modesto e
comovedoramente dependente da minha opinião. Convencê-lo, portanto, de que ele
estava enganado, não foi tarefa difícil. Persuadi-lo de voltar ao Herfordshire,
após ter firmado o primeiro ponto, foi coisa de um instante. Não me arrependo
de o ter feito. Existe apenas uma parte da minha conduta que não me satisfaz
inteiramente; pois condescendi em usar de certos artifícios para esconder de
Bingley o facto de sua irmã se encontrar em Londres. Sabia dessa presença, bem
como a Menina Bingley, mas o irmão desta ainda agora o ignora. É, talvez,
provável que eles se encontrassem sem outras consequências; mas o seu afecto
não me pareceu suficientemente extinto para que ele pudesse ver sua irmã sem
correr algum perigo. Talvez tal encobrimento, tal subterfúgio, seja indigno de
mim. Contudo, é um facto consumado e assistido das melhores intenções. Sobre
este assunto nada mais se me oferece dizer-lhe, nem outras explicações a
dar-lhe. Se acaso causei desgosto a sua irmã, foi sem saber que o fiz, e,
embora os motivos que inspiraram a minha conduta lhe pareçam a si naturalmente
insuficientes, não vejo ainda razões para condená-los. Quanto à outra acusação
que me foi feita, a mais grave e a que diz respeito ao Sr. Wickham, só poderei
refutá-la revelando-lhe a história da sua relação com a minha família. Ignoro
se ele formulou alguma acusação particular à minha pessoa; mas acerca da
verdade do que vou relatar poderei indicar-lhe mais de uma testemunha
insuspeita. O Sr. Wickham é filho de um homem muito respeitável, que durante
vários anos geriu os bens da propriedade de Pemberley e cuja conduta
irrepreensível no desempenho do seu cargo mereceu naturalmente a gratidão de
meu pai, que se reflectiu sobretudo em George Wickham, seu afilhado, para com o
qual se mostrou de uma generosidade sem limites e lhe devotou grande afeição.
Meu pai pagou-lhe os estudos num colégio e mais tarde em Cambridge, auxílio
este deveras importante, pois o pai do Sr. Wickham, que as extravagancias da
esposa privavam quase sempre do necessário, não estava em condições de dar ao
filho uma educação liberal. Meu pai não só apreciava a companhia de George
Wickham, cujas maneiras, aliás, eram sempre muito cativantes, como tinha por
ele a maior admiração e, alimentando a esperança de que o rapaz abraçasse a
carreira eclesiástica, tencionava reservar-lhe um lugar na mesma. Quanto a mim,
desde há muito tempo que me desiludira a respeito dele. As suas más
inclinações, a falta de escrúpulos, que ele tinha o cuidado de esconder do seu
melhor amigo, não poderiam passar despercebidas a um rapaz da sua idade, que o
observava e tinha a oportunidade de o ver em momentos de descuido, coisa que ao
Sr. Darcy era totalmente impossível. De novo me vejo forçado a magoá-la - até
que ponto, só a menina o poderá dizer. Mas quaisquer que sejam os sentimentos
que o Sr. Wickham lhe possa ter inspirado, a suspeita que alimento acerca
desses sentimentos não me impedirá de lhe revelar o verdadeiro carácter de tal
pessoa, e apenas constituirá mais um motivo. O meu excelente pai morreu há
cerca de cinco anos e a sua afeição pelo Sr. Wickham manteve-se tão firme até
ao fim que nas suas últimas vontades me recomendou que me encarregasse de velar
pelo bem-estar do seu afilhado e, acaso ele sempre se ordenasse, providenciasse
para que ele fosse ocupar um importante posto, mal este vagasse. Deixou-lhe
também um legado de mil libras. O pai dele não sobreviveu muito tempo ao meu, e
meio ano após estes acontecimentos recebi uma carta do Sr. Wickham em que ele
me informava ter decidido não tomar ordens e me pedia o adiantamento da
compensação pecuniária pelo lugar que ele nunca ocuparia. Tencionava,
acrescentava ele, dedicar-se ao estudo de Direito e esperava que eu
compreendesse que o rendimento das mil libras não bastariam para tal. Apesar do
meu desejo em acreditar na sua sinceridade, não o consegui; mas, mesmo assim,
mostrei-me favorável à sua proposta. Eu sabia que o Sr. Wickham nunca
enveredaria pela carreira eclesiástica. O assunto foi em breve arrumado. Ele
desistiu de toda a protecção relativa à sua entrada na Igreja, mesmo se algum
dia estivesse em situação de recebê-la, e aceitou em troca a quantia de três
mil libras. A partir daí, nada tínhamos que dizer um ao outro. O que eu sabia a
respeito dele era suficiente para não o desejar como amigo. Não o convidava
para Pemberley, nem procurava a sua companhia na capital. Aí instalado, creio
que praticamente sempre, a sua pretensão de estudar Direito não passou de um
subterfúgio e achando-se nessa altura liberto de qualquer obrigação,
entregou-se a uma vida de indolência e dissipação. Durante três anos poucas
notícias tive dele; mas, quando faleceu a pessoa que ocupava o posto que lhe
fora destinado, ele tornou a escrever-me, solicitando a sua apresentação para o
dito lugar. A sua actual situação, dizia ele, e o que não me custou a
acreditar, era bastante precária. Descobrira que o estudo de Direito era pouco
proveitoso e estava agora absolutamente resolvido a tomar ordens, acaso eu o
apresentasse para o posto que acabara de vagar, coisa de que ele não duvidava,
pois estava informado de que não havia outro pretendente e confiava que eu
tivesse presente as intenções do meu venerando pai; creio que não me censurará
por lhe ter recusado tal pretensão e rejeitado todas as suas tentativas no
mesmo sentido. O seu ressentimento foi proporcional à situação desesperada em
que se encontrava - e mostrou-se, sem dúvida, tão violento no ataque que à
minha pessoa fez na opinião dos outros como nas recriminações que me dirigiu.
Após esse período, todas as relações de mera formalidade foram cortadas. Como
ele viveu não sei. Mas no Verão passado tornou a atravessar-se no meu caminho,
e da forma mais repugnante. Devo agora mencionar certas circunstâncias que eu
mesmo desejaria esquecer e que apenas uma obrigação tão forte como a actual me
levam a revelá-las a alguém. Depois de ter dito isto, confio inteiramente na
sua discrição. A minha irmã, dez anos mais jovem do que eu, foi deixada em
tutela ao sobrinho da minha mãe, o coronel Fitzwilliam, e a mim próprio. Há
cerca de um ano, ela saiu do colégio e foi morar em Londres, na companhia de
uma senhora encarregada de superintender na sua educação. No
Verão passado,
ela e essa senhora foram para Ramsgate. O Sr. Wickham, obedecendo sem dúvida a
um plano, partiu para o mesmo lugar; descobriu-se depois que houvera um
entendimento prévio entre ele e a Sr.a Younge, sobre cujo carácter nos
enganámos desgraçadamente. Com o auxílio e a conivência de tal pessoa, George
Wickham conseguiu captar de tal modo as boas graças de Georgiana, cujo coração
extremamente afectivo conservava ainda viva a impressão da bondade com que ele
a tratara em criança, que ela se convenceu de que o amava realmente e consentiu em ser raptada.
Ela tinha então apenas quinze anos, o que lhe servirá de desculpa; e, após ter
constatado a sua imprudência, tenho o consolo de poder acrescentar que soube
disto por ela própria. Cheguei a Ramsgate, inesperadamente, um ou dois dias
antes da projectada fuga, e Georgiana, incapaz de suportar a ideia de desgostar
e ofender um irmão que ela considerava quase como um pai, confessou-me tudo.
Pode bem imaginar como me senti e como agi. A fim de não prejudicar a reputação
da minha irmã e não ofender os seus sentimentos, abstive-me de qualquer acto de
represália em público; mas escrevi ao Sr. Wickham, que partiu imediatamente.
Quanto à Sr.a Younge, não hesitei em despedi-la. O principal objectivo do Sr.
Wickham era, sem dúvida, apoderar-se da fortuna de minha irmã, que é de trinta
mil libras; mas não posso deixar de pensar que o desejo de se vingar de mim
tenha também influído fortemente nele. A sua vingança seria, de facto,
completa.
Esta é, minha
senhora, a narrativa fiel dos acontecimentos que nos dizem respeito a ambos; e,
se não a rejeitar como absolutamente falsa, espero que me sirva de atenuante
para a crueldade com que agi contra o Sr. Wickham. Não sei de que modo, nem as
falsidades de que ele usou para a atrair à sua causa; mas o êxito por ele
alcançado não é de estranhar. Dada a sua ignorância total dos factos e das
personagens, não só não estava em seu poder desmascarar essas falsidades, como,
além de tudo, o seu temperamento não é dado à desconfiança. Talvez se
surpreenda por eu não lhe ter contado tudo isto ontem à noite, mas naquele
momento não tinha suficiente domínio sobre mim mesmo para decidir o que devia e
o que não devia revelar. Quanto à verdade de tudo o que aqui ficou relatado,
posso apelar particularmente para o testemunho do coronel Fitzwilliam, que,
dado o nosso parentesco e constante intimidade, e sobretudo a sua qualidade de
executor testamentário de meu pai, foi posto necessariamente a par de todos os
detalhes concernentes a esses acontecimentos. Se acaso a antipatia que por mim
nutre a impedir de dar o devido valor às minhas asserções, o mesmo não
acontecerá em relação ao meu primo, e, para que haja a possibilidade de
consultá-lo, procurarei entregar-lhe esta carta logo de manhã. Acrescentarei
apenas, Deus a abençoe! - Fitzwilliam Darcy.
amo essa carta! muito obrigada!
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