Capítulo 23
Jane e Elizabeth conversam
Jane e Elizabeth conversam
A carta da Menina Bingley chegou, finalmente, e pôs termo a todas as dúvidas. Logo na primeira frase, começava por comunicar a certeza da permanência de todos eles em Londres durante o Inverno inteiro e concluía participando o pesar do irmão em ter partido sem que lhe fosse dado tempo para uma palavra de atenção a todos os seus amigos de Hertfordshire.
Era o fim da
esperança, de toda e qualquer esperança; e, quando Jane conseguiu retomar a
leitura da carta, nela nada mais encontrou que lhe trouxesse algum conforto,
para além da professada afeição da amiga. O elogio da Menina Darcy preenchia-a
quase por completo. Os seus inúmeros atractivos eram de novo esmiuçados e
Caroline exultava de alegria pela crescente intimidade entre elas, ousando até
predizer a realização dos desejos revelados na sua primeira carta.
Regozijava-se também pelo facto de o irmão se encontrar presentemente instalado
em casa do Sr. Darcy e referia-se, enlevada, aos planos deste último com
respeito a novas alterações no mobiliário.
Elizabeth, a
quem Jane prontamente comunicou a súmula de tudo isto, escutou-a em silenciosa
indignação. O seu coração dividia-se entre a inquietação por sua irmã e o
ressentimento contra todos os outros. Quanto à informação de Caroline sobre a
preferência do irmão pela Menina Darcy, não lhe dava crédito. Que ele estava
realmente apaixonado por Jane, ela não alimentava quaisquer dúvidas; e, embora
ela sempre tivesse simpatizado com ele, não podia deixar de considerar com
rancor, quase com desprezo até, a moleza de carácter e a falta de poder de
decisão que agora o escravizavam à vontade insidiosa dos amigos e o levavam a
sacrificar a própria felicidade ao capricho das inclinações deles. Se acaso se
tratasse apenas da sua felicidade, ser-lhe-ia permitido dispor dela conforme
melhor lhe aprouvesse, mas estava também em jogo a felicidade de Jane, e Elizabeth
não admitia que ele o pudesse ignorar. Era, em resumo, um assunto que oferecia
à reflexão pano para mangas, mas baldadamente. Ela não encontrava outra
explicação; e, contudo, quer o amor de Bingley tivesse realmente sucumbido ou
sido abafado pela interferência dos amigos, quer ele tivesse tido consciência
do afecto de Jane, ou esse mesmo afecto tivesse escapado à sua observação, em
qualquer que fosse o caso, embora a sua opinião dele sofresse materialmente
pela diferença, a situação da irmã conservava-se idêntica e a sua tranquilidade
igualmente afectada.
Um ou dois dias
passaram sem que Jane tivesse tido coragem para desabafar com Elizabeth; mas
numa dada altura, em que a Sr.a Bennet as deixou a sós após uma irritação mais
prolongada do que o habitual sobre Netherfield e o seu dono, ela não se conteve
e disse:
- Oh! Quisesse
Deus que a minha mãe tivesse mais domínio sobre si; ela não faz ideia como me
magoa ouvi-la constantemente referindo-se a ele nestes termos. Mas não me quero
lamentar. Isto não demorará muito mais. Ele em breve será esquecido e todos
tornaremos a ser o que éramos antes. Elizabeth fitou
a irmã com incrédula solicitude, mas nada disse.
- Duvidas de mim
- exclamou Jane, corando ligeiramente - mas não tens
razão para tal. Ele pode perdurar na minha memória como o homem mais simpático
que conheci, mas não passará daí. Nada tenho que esperar ou que recear e nada
tenho para lhe censurar. Graças a Deus, foi-me poupada «essa» dor! Por isso,
mais um pouco... e tentarei certamente recompor-me. - Com uma voz mais firme,
em breve acrescentou: - Por agora, reconforta-me a ideia de não passar de um
erro de imaginação meu e de não ter causado sofrimento em ninguém, excepto em
mim própria.
- Minha querida
Jane - exclamou Elizabeth -, és boa de mais! A tua doçura e desinteresse são
verdadeiramente angélicos; não sei o que te dizer. Sinto como se nunca tivesse
apreciado bastante ou gostado de ti como realmente o mereces.
A Menina Bennet
negou qualquer mérito extraordinário e atribuiu o elogio à profunda afeição da
irmã.
- Não - disse
Elizabeth -, isso não é justo. Partes do princípio de que todos são
respeitáveis e ficas magoada quando eu digo mal de alguém, mas, se eu decido
achar-te «a ti» perfeita, rebela-te contra mim. Não receies que eu caia em
exagero ou usurpe o teu privilégio de boa vontade universal, pois não há razão
para isso. São poucas as pessoas de quem eu gosto realmente e mais restrito
ainda o número daquelas de quem eu faço um bom juízo. Quanto mais conheço o mundo,
maior é o meu descontentamento por ele; e cada dia confirma a minha crença na
inconsistência de todos os caracteres humanos e na pouca confiança susceptível
de ser depositada na aparência quer do mérito como do bom senso. Encontrei dois
exemplos ultimamente; um deles não mencionarei; o outro é o casamento de
Charlotte. É inexplicável! Em todos os aspectos ele é inexplicável!
- Minha querida
Lizzy, não te deixes arrastar por tais sentimentos. Eles ainda arruinarão a tua
felicidade. Tu não concedes uma margem suficiente para as diferenças de
situação e temperamento. Considera a respeitabilidade do Sr. Collins e o
carácter prudente e resoluto de Charlotte. Lembra-te de que ela faz parte de
uma numerosa família;
que,
monetariamente, trata-se de uma união desejável; e, para o bem de todos,
inclina-te a acreditar que ela sinta inclinação ou estima pelo nosso primo.
- Só para te
agradar, eu tentaria acreditar em tudo o que quisesses, mas ninguém mais
beneficiaria com isso além de tu mesma; pois, estivesse eu persuadida de que
Charlotte tivesse alguma consideração por ele, apenas teria pior opinião do seu
entendimento do que aquela que agora tenho do seu coração. Minha querida Jane,
o Sr. Collins não passa de um homem que, além de presunçoso e convencido das
suas possibilidades, é tacanho e estúpido; tu sabe-o, tão bem como eu; e deves
sentir, tão bem como eu, que a mulher que casa com tal homem não pode ter uma
maneira de pensar adequada. Não a defenderás, embora se trate de Charlotte
Lucas. Não modificarás, por causa de um indivíduo, o significado do princípio
ou da integridade, nem tentarás persuadir-te a ti ou a mim de que egoísmo é
prudência, e insensibilidade do perigo segurança para a felicidade.
- Penso apenas
que a tua linguagem é demasiado forte referindo-te a ambos - replicou Jane - e
que virá o dia em que te convencerás disso, quando os vires felizes um com o
outro. Mas acabemos com este assunto. Tu falaste ainda noutra coisa.
Mencionaste «dois» exemplos. Não quero interpretar-te mal, mas suplico-te,
querida Lizzy, que não me atormentes ao pensar que «essa tal pessoa» merece
censura e ao dizer que a tua opinião dele se perdeu. Devemos a todo o custo
evitar precipitações e imaginarmo-nos intencionalmente injuriados. Não nos é
lícito esperar que um jovem tão cheio de vida se comporte invariavelmente de
forma tão reservada e circunspecta. Grande parte das vezes é a nossa própria
vaidade que nos ilude. Para as mulheres, a admiração de que elas se crêem o
objecto significa mais do que aquilo de que de facto se trata.
- E são os
homens que se encarregam de as convencer.
- Se é
propositadamente que o fazem, não têm desculpa; mas não creio que no mundo haja
tanta duplicidade, como a maioria das pessoas pretende fazer acreditar.
- Estou longe de
atribuir à duplicidade qualquer faceta do comportamento do Sr. Bingley disse
Elizabeth -; mas o que é certo é que, mesmo sem se planear fazer o mal ou
tornar outros infelizes, podem-se criar situações de equívoco e de miséria.
Refiro-me à inconsciência, à falta de atenção para com os sentimentos dos
outros e à falta de poder de resolução.
- E qual lhe
atribuis?
- O último. Mas
não vou continuar, pois corro o risco de te desagradar ao dizer o que penso de
pessoas que tu estimas.
- Persistes,
então, em supor que as suas irmãs o influenciam?
- Sim, de
combinação com o amigo dele.
- Não acredito.
Por que tentariam elas influenciá-lo? Apenas lhe podem desejar a sua
felicidade, e, se ele sente atracção por mim, nenhuma outra mulher lha pode
garantir.
- A tua primeira
afirmação é falsa. Elas podem desejar-lhe várias outras coisas além da
felicidade; podem desejá-lo mais rico e mais influente; podem desejar casá-lo
com uma rapariga investida de toda a importância que o dinheiro, a nobreza e o
orgulho conferem.
- Sem dúvida que
elas desejam vê-o escolher a Menina Darcy - replicou Jane -, mas os sentimentos
que as norteiam podem ser melhores do que aqueles que supões. Conhecendo-a há
mais tempo do que me conhecem a mim, não me admira que a apreciem mais. Porém,
quaisquer que sejam os seus desejos, não é provável que se oponham aos do
irmão. Que irmã se atreveria a tanto, a não ser numa situação deveras
censurável? Se elas acreditassem no amor dele por mim, nunca tentariam
separar-nos; e, se acaso ele gostasse de mim, nunca elas conseguiriam o seu
intento. Tu acreditas no seu amor, e por isso vês em todos eles uma atitude
repreensível, mas não deixas de me magoar. Afliges-me com tal ideia. Não é para
mim uma vergonha ter-me enganado... ou, pelo menos, pouca coisa ou nada é comparado
com aquilo que sentiria se me visse obrigada a fazer um mau juízo dele e de
suas irmãs. Deixa-me encarar a questão pelo seu lado menos antipático, pelo
lado pelo qual ela deve ser compreendida.
Elizabeth não
poderia opor-se a tal desejo; e desde então o nome do Sr. Bingley muito
raramente foi mencionado entre elas.
A Sr.a Bennet
continuava conjecturando e lamentando a sua longa ausência, e, embora não
passasse um dia sem que Elizabeth lhe desse sobre ela uma explicação plausível,
parecia pouco provável que ela alguma vez a considerasse com menos
perplexidade. A filha tentava convencê-la daquilo em que ela própria não
acreditava, que as atenções dele para com Jane tinham sido mero fruto de uma
simpatia vulgar e passageira, a qual acabara quando ele deixou de a ver; mas,
se bem que a probabilidade da sua explicação fosse na altura admitida, ela
via-se obrigada a repetir a história diariamente. O único consolo
da Sr.a Bennet era pensar que o Sr. Bingley voltaria de novo no Verão.
O Sr. Bennet
encarava o assunto de modo bem diverso.
- Então, Lizzy -
disse ele um dia -, pelo que entendi, a tua irmã deu-se mal com o amor.
Felicito-a. Uma rapariga, para além do casamento, adora uma pequenina
frustração de vez em quando. É sempre algo que lhe dá que pensar e confere-lhe
uma espécie de distinção entre as amigas. Quando chegará a tua vez?
Dificilmente suportarás que Jane te leve a palma por muito tempo. Aproveita a
ocasião. Existem neste momento em Meryton oficiais em número suficiente para
enganarem todas as raparigas da região. Porque não Wickham? Que seja ele o
ateu» homem. Ele é um rapaz verdadeiramente encantador e iludir-te-ia sem
deixar de te estimar.
- Agradeço-lhe,
meu pai, mas contentar-me-ia com alguém menos encantador. Não podemos todas
esperar ter a sorte de Jane.
- Lá isso é
verdade - disse o Sr. Bennet -, mas consola pensar que, o que quer que nesse
capítulo te aconteça, terás sempre a teu lado uma mãe estremosa para tirar o
máximo proveito da situação.
O convívio do
Sr. Wickham teve uma acção preponderante em dissipar a melancolia que a
adversidade das últimas ocorrências abatera sobre os vários membros da família
de Longbourn. Viam-no com frequência, e, às suas outras recomendações,
juntava-se agora a de uma franqueza cativante. Tudo aquilo sobre o que
Elizabeth fora informada, quer as suas alegações contra o Sr. Darcy como o que
por causa dele sofrera, era já do domínio público e publicamente analisado; e
todos se sentiam satisfeitos por não ser, afinal, infundada a antipatia que o
Sr. Darcy desde o princípio lhes inspirara.
A Menina Bennet
era a única criatura capaz de supor a existência de circunstâncias atenuantes
no caso e que não fossem do conhecimento da sociedade de Hertfordshire; a sua
terna e serena candura apelava constantemente para a tolerância e instava pela
possibilidade de enganos, mas por todos os outros o Sr. Darcy era apontado como
o mais malvado dos homens.
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